terça-feira, 23 de abril de 2013

Arminda Gonçalves

No limiar da noite

Um escuro crepúsc'lo. São, agora,
quase pretas as velas das fragatas
e os navios, no cais, a esta hora,
guardam no fundo bojo as mais abstractas

e inconcebíveis ânsias. Apavora
a cor das águas. Fosforecem pratas
e ourescentes sinais ao longe. E, embora,
a noite surja, as sombras são exactas.

Marcam no espaço riscos geométricos
as gaivotas. As duas largas margens
do rio são exóticas paisagens.

Passam na rua lívida os eléctricos
cheios de gente. E a noite é como um grito
tumultuoso de ânsia e de infinito.

Em chama reacendida


sábado, 20 de abril de 2013

Arminda Gonçalves

Ainda...

Por mágica fortuna me transporto
ao rio irado em cuja margem suave
encontro o meu porto
e abri a asas de incansável ave.

O fascínio de então, a chama viva
que eu própria era, e aquele olhar aberto
à paisagem anímica e festiva,
como hoje estão de mim tão longe e perto!

O mesmo apelo à vida ainda sinto
na perturbante seiva que percorre
as minhas veias. Bebo o mesmo absinto...
e a minha sede não se farta ou morre.

Ainda aquela origem milagrosa
no frémito da voz que me aturdiu!
E não murchou a flor maravilhosa
que a Primavera abriu!

Parou o Tempo. O espírito persiste,
fascinado a adorar a juventude.
O mesmo amor, a mesma fé subsiste
na mesma plenitude!

Em chama perdida

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Donabela Guerreiro

Momentos - III

Um dia nascerá um sol novo
que dará mais brilho
ao vermelho das papoilas
que desabrocham livremente
nos campos doirados de trigo.
Haverá alegria e pão,
uma nova música nascerá.
Os homens comunicarão nesta linguagem
e as crianças brincarão às rodas,
num prado verde de esperança
e então, todos de mãos dadas
cantaremos o futuro
numa roda do tamanho do mundo.

Em A Mulher as flores o futuro

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Lília da Silva

Do chão se levanta
Este odor a terra molhada
A fundir-se com a violência
Das chuvas
Nas vidraças quebradas.

Em A Mulher as flores o futuro

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Lília da Silva

Fusão

Gota a gota, hora a hora, uma fonte
Goteja, pródigas, as suas lágrimas.
Amor é palavra líquida que sacia
Ainda que não saiba quem dela vai beber.

Amor é não sentir o peso
Das asas da ave mais próxima,
É palavra na qual
Com alegria se morre.

E, como uma chama consome a solidão,
Das cinzas frias a alegria brota
Nas entranhas de uma tocha interior.

É um sonho exacto,
Sonho de ver parar o mundo
E de pedir um sol. Hoje, só hoje.

Roubei do sol pela manhã
E do luar pela madrugada
A luz que trazia toda nas minhas mãos.
Quando fui deixá-la nos teus olhos
Tinha-se escapado por entre meus dedos.
Estou vazia.

Em A Mulher as flores o futuro

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Das danças dos "mastros"

Noutro tempo tinha eu
Nesta rua uma cadeira
Onde assentavam meus olhos
Agora vão de carreira!

"Para bailar o rapaz e a rapariga colocavam-se lado a lado e davam as mãos, cruzando os braços. Uma vez formado o par, entravam numa roda de pares à volta do "mastro". Cantavam em coro à medida que rodavam lentamente, sem preocupação de ritmo. Uma voz a solo, masculina ou feminina, entoava uma quadra que podia ser, ou de elogio à namorada, ou de brincadeira, de provocação ou até saudosista."
Assim, Hélder Mendes, natural de Ourique, descreve a tradição popular do "mastro", na região de Ourique, nos Cadernos Culturais d'Ourique, edição de 2012.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Rosa Maria Cruz

Por mim

Arranca de ti aquilo que te
                                    queima.
Queima aquilo que te seca.
Mas...
deixa germinar o que
                           conserva.

Em A Mulher as flores o futuro

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Rosa Maria Cruz

Tarde

Cai a tarde mansinha
quente e aflitiva,
cai sobre a aldeia branca e
pequenina,
envolvendo numa bruma
silenciosa, calma e doce!

Cai ao de leve com uma suave
brisa
que empurra brincando
os frouxos ramos,
e nos traz o seu fresco aroma.
Ouve~se um melodioso som
cortando a quietude e o silêncio,
ouve-se ao longe, vago, cada vez
mais vago
vago, sim!
Como o ondular das searas
douradas pelo sol
pelo sol que se vai escondendo
demoradamente, silenciosamente!...
Pelo sol
que nos dá luz, vida
e cor!
Pelo sol, que nos deixa a noite
quente e, que à tarde nos abrasa
calorosamente.

Em A Mulher as flores o futuro

terça-feira, 9 de abril de 2013

Rosa Maria Cruz

"Sonhei"

Sonhei um dia...
Com um mundo lindo e justo
Em que a natureza era tudo,
Em que as árvores e o céu se tocavam
Num gesto espontâneo,
Em que o sol brilhava para todos,
E o céu se tingia de vermelho
Ao entardecer.
Em que o tapete verde
De esperança
Cobria a terra onde
Os Homens eram iguais.

Aí a paz era uma constante
Do dia a dia
E a guerra não existia!

Mas... sonhei apenas!...

Em A Mulher as flores o Fruto, editado pelo Grupo Cultural de S. Domingos

sábado, 6 de abril de 2013

Cecília Meireles

Minha canção não foi bela,
minha canção foi só triste.
Mas eu sei que não existe
mais canção igual àquela.

Não há gemido nem grito
pungente como a serena
expressão da doce pena.

E por um tempo infinito
repartiria o meu canto
- saudosa de sofrer tanto.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Francisco Miguel

Tens um feitio de arradia
às vezes de mau humor
és como aquela que via
mais de noite que de dia
e contudo tinha amor

És uma contradição
muito bem politizada,
mas tens um bom coração
dizes sim ou dizes não
mais ou menos irritada.

(Versos dedicados à Ana Benedita)