Canção de maltês
Bati à porta do monte
porque sou um deserdado.
E chovia nessa noite
como se o céu fosse um mar
entornando-se na terra.
- Quem abre a porta a desoras
morando num descampado?
E continha o rafeiro que ladrava,
na ponta do meu cajado.
Mas veio abri-la o lavrador
com a espingarda na mão,
e pôs um olhar altivo
tão no fundo dos meus olhos
que as minhas primeiras falas
foram assim naturais:
- guarde a espingarda, senhor,
sou um homem sem trabalho.
Fui secar-me à lareira.
E a filha do lavrador,
que era uma moça perfeita,
ficou a olhar de gosto
a minha manta rasgada
e o meu fato de maltês.
E com licença do pai,
estendeu-me um canto de pão
com azeitonas maduras.
Não aceitei como esmola;
antes roubar que pedir;
paguei com a melhor história
da minha vida sem rumo.
Foi uma paga de rei.
Prá filha do lavrador
tinha muito mais valia
a história que lhe contei
que o trigo do seu celeiro,
pois estava a olhar de gosto
a minha manta rasgada.
E quando o fogo na lareira
ia aos poucos esmorecendo
agradeci como é de uso;
despedi-me até mais ver
e fui dormir pró palheiro
que é palácio de maltês.
Despedi-me até mais ver
que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer
ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Assim me deitei ao canto
a esperar pela manhã.
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