sexta-feira, 2 de março de 2012

Linhares Barbosa

Numa velha habitação
Vi há pouco um grande drama
Que muito me impressionou.
Abraçados à mãezinha
Choram quatro criancinhas
Pelo pai que não voltou.

Foram prendê-lo de noite
Porque assinara um artigo
No jornal revolucionário
Teve chufas o açoite
Quando foi para o seu calvário
Quando foi para o seu castigo.
Riram à sua passagem
O burguês e o mendigo
Ante aquela humilhação
Sentiu-se mais revoltado
E a caminho da prisão
Pareceu-lhe ir entre judeus
Fora preso e algemado
Mesmo ao pé dos filhos seus
N'uma velha habitação

Ao deixar a santa prole
O empolgante escritor
Teve um abismo de sorvos
Nenúfar lançados aos corvos
Que n'um bando grasnador
Parecem cobrir o sol.
Apóst'lo dum novo escol
Chamaram o anarquista
Toda a gente o acusou
Sem ver que ele insuflou
D'um ideal que inflama
Redenção, o mundo bélico
Pois no lar deste famélico
Vi há pouco um grande drama
Que  muito me impressionou.

Eu tinha entrado a saber
Se havia alguma notícia
Do mártir encarcerado
Mas senti-me emudecer
Que ninho tão torturado
P'la vil obra da polícia!
Lá dentro reinava um misto
De miséria e de carícia
-Informou-me uma vizinha:
Que a mulher do que acusavam
Vendo que o esposo não vinha
Matara-se entre loucuras.
As crianças dormitavam
Talvez sonhando venturas,
Abraçadas à mãezinha.

Havia livros caídos
Mudas vítimas talvez
Da busca policial,
Esse sistema brutal
Eivado de hediondez
Que usam para os perseguidos.
Como todos os traídos
O herói foi p'ra o degredo;
E na carta que enviou,
Um beijo a todos mandou,
Nas asas das andorinhas
Que voam de muito além.
Transmitindo o beijo à mãe
Choram quatro criancinhas
Pelo pai que não voltou.

Linhares Barbosa (1893 - 1965), poeta e jornalista, é autor de cerca de três mil poemas de fado. Foi um dos mais empenhados na defesa e dignificação do fado e dos fadistas.
Situado na área do anarco-sindicalismo, deixou reflectida em muitos dos seus poemas essa sua identificação. Fundou em 1922 uma das publicações mais prestigiadas - Guitarra de Portugal - que dirigiu durante muitos anos, deixando nela a marca da sua personalidade. Aí foram publicados muitos dos seus poemas, entre os quais o Fado do Degredado (acima transcrito), relacionado com as fortes lutas operárias dos anos vinte do século passado,  bom exemplo da sensibilidade social de Barbosa.


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