Um Martins que foi pedreiro
O que havia d'arranjar
Deu-me a filha p'ra casar
E eu deixei de ser solteiro
Tinha um café no Ribeiro
Fomos amigos correctos
Debaixo dos mesmos tectos
Não se metia em sarilhos
Era o avô dos meus filhos
E o bisavô dos meus netos.
Terra de trabalhadores
Nas diversas profissões
Empregados e patrões
Dos serventes aos doutores
A todos presto louvores
Com o devido respeito
Mesmo sem força nem jeito
Quero abraçá-los a todos
Que tenham saúde a "rodos"
Por tudo o que têm feito.
Senhora da Madre-Deus
Peço-te um grande favor
Pede a Deus Nosso Senhor
Por estes amigos meus
E um Cordeiro que fala em Deus
Merece consideração
O Padre de Cabeção
Qu'encomenda os nossos mortos
Casa uns baptiza outros
Tem uma bela missão.
Peço p'ra ser desculpado
Se algum de vós ofendi
Com aquilo que escrevi
Não foi mal intencionado
Assim fica registado
Desta forma deslavada
P'ra que possa ser lembrada
E eu não tenho receios
Os nomes podem ser feios
Mas é tudo gente honrada.
Já corri a vila inteira
Andei "à cata" de gente
Com algum nome diferente
Lá na minha parenteira
E assim desta maneira
Não sei se fiz bem ou mal
Mas o meu espanto foi tal
Com os nomes que aqui estão
Eu cheguei à conclusão
Que acabei c'o pessoal.
Quero chamar a atenção
De quem estes versos ler
Eu limitei-me a escrever
E não fiz pontuação
Eu deixo à consideração
De todo e qualquer leitor
Poeta ou declamador
Que os diga como quiser
A forma como os disser
Não ofende o seu autor.
Fim!
Esta longa composição poética, em décimas, constitui uma crónica dos nomes, apelidos e alcunhas das gentes de Cabeção. Nela perpassa a ternura do autor pelas pessoas suas conterrâneas. Quantas destas alcunhas terão passado a apelido dos descendentes do alcunhado? Quantos destes apelidos terão resultado de uma graçola ocasional? O Alentejo é fértil nesta tradição - raramente numa aldeia escapará alguém a uma ou mais alcunhas. E, se recuarmos no tempo, era facílimo a alcunha passar a apelido "oficial", isto é, no Registo Civil, na Cédula Pessoal, no Bilhete de Identidade!
E que dizer das alcunhas "ofensivas", aquelas só usadas "nas costas" da pessoa alcunhada... Cito aqui um caso que conheci, de uma mulher que foi "baptizada" de Perna Cagada, a quem eu quando criança tratei dessa forma, acrescentando prima - Prima Perna Cagada! Claro que a resposta foi uma valente bofetada. Já que referi a minha experiência de infância, faço ainda uma confidência: No meu agregado familiar, na grande cidade, portanto, a dada altura, como não conhecíamos os nomes de alguns vizinhos, para, por algum motivo as nomearmos (só entre nós), resolvemos usar alcunhas: a Plástica, uma senhora que constantemente sacudia uma tolha de plástico; a Janeleira, senhora que passava horas seguidas à janela; o Neco, porque era super-parecido com um personagem de telenovela muito popular na altura.
A propósito deste poema, pela sua importância, faço referência a uma obra muito interessante, o Tratado das Alcunhas Alentejanas, de Francisco Martins Ramos e Carlos Alberto da Silva, que constitui um inestimável contributo para o conhecimento deste tema. E também a História da Vida Privada em Portugal, obra em 4 volumes dirigida pelo Professor José Matoso, editada pelo Círculo de Leitores, que no primeiro volume trata com rigor a questão da atribuição do nome, apelidos e alcunhas, desde tempos remotos aos nossos dias, e como foi a evolução nas famílias, nas regiões, nos vários grupos sociais.
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